Zoonoses virais emergentes associadas a roedores: riscos ocupacionais em Medicina Veterinária

MV. Dr. Ricardo Luiz Moro de Sousa – rlmoros@uol.com.br
Departamento de Patologia Veterinária – Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias – Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Jaboticabal/SP

No continente americano, as infecções por hantavírus e arenavírus têm obtido nos últimos anos maior atenção por parte dos órgãos públicos competentes e profissionais das mais diferentes áreas, em virtude da gravidade das doenças associadas a esses agentes, apresentando altas taxas de fatalidade. Nesse sentido, exigências para uma melhor compreensão da epidemiologia, bem como da prevenção da síndrome pulmonar e cardiovascular por hantavírus e febres hemorrágicas por arenavírus tornaram-se constantes, no âmbito da saúde pública e nas atividades ocupacionais correlatas, destacando-se a Medicina Veterinária, particularmente devido ao potencial zoonótico dessas enfermidades.

Os hantavírus estão distribuídos mundialmente e são responsáveis por duas doenças humanas distintas: a febre hemorrágica com síndrome renal, ocorrendo particularmente na Europa e Ásia, e a síndrome pulmonar e cardiovascular por hantavírus (SPCVH), ocorrendo nas Américas. Em geral, ambas são adquiridas através da inalação de aerossóis originários de excretas (urina, fezes e saliva) de roedores infectados. Entretanto, casos de transmissão inter-humana já foram relatados, assim como infecções adquiridas através de mordidas de roedores infectados.

Os arenavírus, por sua vez, apresentam distribuição mais restrita, África e Américas, acompanhando a localização geográfica de seus reservatórios, excetuando-se o vírus da coriomeningite linfocitária que apresenta distribuição mundial. Estes vírus determinam quadros de febres hemorrágicas (FH) severas ou de meningites em pessoas que inalaram aerossóis oriundos de excretas de roedores infectados, a exemplo do modo de transmissão usual dos hantavírus. De maneira similar, casos de transmissão inter-humana, infecções acidentais em laboratórios e penetração viral via abrasões cutâneas também já foram descritos.

Em termos epidemiológicos, tanto os hantavírus como os arenavírus apresentam uma estreita associação filogenética entre distintos genotipos ou sorotipos virais com subespécies, espécies ou gêneros de roedores, pertencentes a diferentes subfamílias da família Muridae, determinando um padrão de co-evolução ou co-especiação hospedeiro-parasita. Nesse sentido, verifica-se a circulação de hantavírus distintos entre o Velho Mundo (Europa e Ásia) e o Novo Mundo (Américas), à semelhança dos arenavírus (África e Américas), com grupos de variantes genéticas geograficamente restritos, em paralelo à distribuição das espécies de roedores. A propósito, no continente americano, roedores pertencentes à subfamília Sigmodontinae são os principais reservatórios para ambos os vírus.

Os roedores desenvolvem infecções crônicas ou persistentes, embora permaneçam clinicamente assintomáticos, com capacidade de excretar partículas virais infecciosas por longos períodos, podendo estender-se por toda a vida do animal, independentemente da presença de resposta imune efetora. Adicionalmente, estudos soroepidemiológicos têm demonstrado valores de soropositividade para hantavírus e arenavírus entre roedores extremamente variáveis, os quais parecem depender de fatores ecogeográficos e temporais, podendo alcançar em alguns casos até 60%.

Em relação aos hantavírus encontrados nas Américas, desde 1993, quando o vírus Sin Nombre, um dos agentes etiológicos da SCPVH e associado à espécie Peromyscus maniculatus, foi identificado nos Estados Unidos da América, mais de 600 casos de disfunção cardio-respiratória aguda por hantavírus foram registrados no Brasil, com taxas de fatalidade maiores do que 40% e índices de soroprevalência de até 14,3%. No Brasil, foram detectados geneticamente, embora não isolados, os seguintes hantavírus associados a casos de SCPVH em diferentes regiões do país: Araraquara (Sudeste e Centro-Oeste), Juquitiba (Sudeste e Sul), Anajatuba (Norte), Rio Mearim (Norte) e Castelo dos Sonhos (Norte), os quais apresentam como reservatórios, respectivamente, sigmodontíneos pertencentes às espécies Bolomys lasiurus, Oligoryzomys nigripes, Oligoryzomys fornesi e Holochilus sciureus, sendo que para o genotipo Castelo dos Sonhos, o reservatório ainda não foi identificado. Estudos soroepidemiológicos recentes também têm indicado roedores do gênero Akodon como potenciais reservatórios para hantavírus nas regiões Sul e Sudeste do país.

Quanto à infecção por arenavírus, dois casos fatais e três outros não-fatais de FH já foram notificados no Brasil. Os dois casos fatais ocorridos em 1990 e 1999, no Estado de São Paulo, estão associados ao genotipo Sabiá, cujo reservatório ainda permanece desconhecido.

Três outros arenavírus já foram detectados no país, todos na região norte: Amapari, Cupixi e Flexal. As espécies Oryzomys goeldi e Neacomys guianae atuam como reservatórios para o vírus Amapari, enquanto que as espécies Oryzomys capito e Oryzomys bicolor estão, respectivamente, associados aos genotipos Cupixi e Flexal.

As espécies conhecidas de sigmodontíneos implicadas na manutenção de hantavírus e arenavírus em território nacional apresentam os mais variados habitats: desde os ecossistemas dominados por savanas (Cerrado, Caatinga) até áreas de floresta ombrófila densa (Floresta Amazônica, Mata Atlântica) ou mista (Mata de Araucária), incluindo as regiões de interface entre diferentes padrões fitoecológicos.

Apesar da completa descaracterização da cobertura vegetal original pela expansão das fronteiras agrícolas e exploração madereira, essas espécies de roedores adaptaram-se rapidamente a ambientes agrícolas, principalmente aqueles dominados pelas culturas da cana-de-açúcar, milho, arroz e gramíneas forrageiras (Brachiaria sp., Panicum sp.), entre outras, os quais proporcionam abrigo e alimento (grãos, sementes) em abundância, particularmente em áreas de plantio circundando ou próximas a fragmentos de matas. Mais do que isso, essas espécies tem sido encontradas em áreas limítrofes de cidades, devido ao intenso crescimento dos centros urbanos, sobrepondo nichos até então exclusivos de espécies sinantrópicas.

Nesse contexto, dada a presença de reservatórios e vírus nas mais diversas regiões do país, profissionais associados a atividades ocupacionais desenvolvidas em áreas rurais ou florestais, como também em zoológicos, (médicos veterinários, biólogos, engenheiros agrônomos, zootecnistas, etc.) devem estar alertas para medidas de segurança, necessárias à prevenção da SPCVH e FH, em virtude do contato com ambientes potencialmente contaminados por excretas de roedores infectados por hantavírus e/ou arenavírus. Para tanto, vestuário e equipamentos de proteção individual como macacões, aventais descartáveis e impermeáveis, botas de borracha, luvas (procedimento, látex, raspa, etc.), óculos e máscaras são altamente recomendados.

Para atividades desenvolvidas a campo, especialmente em locais fechados com pouca ventilação e de limpeza espóradica, como paióis, armazéns e construções desabitadas, muitas vezes utilizados como pontos de apoio para procedimentos clínico-cirúrgicos em animais selvagens, é recomendado, na medida do possível, a prévia ventilação e utilização de solução de hipoclorito de sódio a 10% para lavagem de pisos, evitando-se a varrição do ambiente, a qual tende a aumentar o número de partículas em suspensão (aerossóis), entre as quais excretas de roedores ressecadas. Uma alternativa adequada para o trabalho nestes ambientes é a utilização de equipamentos de proteção respiratória como máscaras individuais com filtros HEPA (“High-Efficiency Particulate Air”), incluindo-se os respiradores motorizados de
pressão positiva.

Medidas ambientais normalmente empregadas para se controlar e/ou evitar a presença de roedores urbanos (Mus musculus, Rattus rattus, Rattus novergicus) também são imprescindíveis no controle de sigmodontíneos e, dentre elas, podemos destacar o correto acondicionamento e estocagem de alimentos, a destinação adequada de lixo e a desinfecção periódica de ambientes, particularmente os fechados ou com pequena circulação de pessoas.

Tais medidas são particularmente importantes em zoológicos, geralmente localizados em áreas com grande arborização, as quais podem atrair as mais diferentes espécies de roedores, ou ainda em acampamentos destinados ao desenvolvimento de atividades a campo. Ademais, considerando-se a complexidade taxonômica dos sigmodontíneos sul-americanos, incluindo 62 gêneros e 300 espécies conhecidas, estudos sistemáticos em eco-epidemiologia para a identificação de novos reservatórios tornam-se relevantes para a melhor compreensão da epidemiologia e prevenção da SPCVH, bem como da FH por arenavírus no Brasil.

Dado o caráter ocupacional inerente a essas enfermidades, aliado ao fato da premência de ações de divulgação pública sobre a prevenção dessas zoonoses junto à população em geral, a presente exposição objetivou alertar aos colegas médicos veterinários, bem como demais profissionais envolvidos em atividades a campo ou zoológicos, sobre os riscos e cuidados preventivos básicos relativos às infecções por hantavírus e arenavírus, as quais têm representado importante desafio à saúde pública no Brasil.

Fonte
: Associação Brasileira de Veterinários de Animais Selvagens/ABRAVAS – www.abravas.org.br


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